quarta-feira, 24 de setembro de 2025

o último aceno

Foto: Humberto Araújo
 
E a indesejada das gentes, como disse Manuel Bandeira, chegou hoje dura e ineludível ao ator Guilherme Reis.
Gestor cultural, criador do festival de teatro Cena Contemporânea, que este ano completou três sólidas décadas, Reis foi secretário de Cultura do DF entre 2015 e 2018.
Nossos encontros sempre foram ótimos. Atencioso e amável, muito conversamos sobre cinema. Disse-lhe uma vez que se um dia eu ousasse fazer uma versão do clássico de Cervantes, num viés de releitura no Cerrado, ele seria escalado para o papel de Dom Quixote, pelo tipo físico e certeza que viveria bem o personagem e vestiria adequadamente as indumentárias contra os moinhos de vento. Ele riu, surpreso e agradecido, e emendou que já vivia, como artista brasileiro, na contramão dos ventos difíceis desses moinhos.
Em outubro do ano passado, no velório do cineasta Vladimir Carvalho no hall do cine Brasília, tive um impacto quando ele chegou de cadeira de rodas. Não sabia que estava doente, com problemas pulmonares. Mas não parecia nada debilitado de tão sorridente e altivo. Da mesma forma o reencontrei no mês passado, em sessões do Cena Contemporânea. Na saída de uma das peças na Caixa Cultural, nos cumprimentamos. Ele deu um aperto de mão, olhou-me fixamente com doçura e estendeu um sorriso sem nada dizer.
Ou queria dizer: lutando contra os moinhos de vento para continuar aqui. 

terça-feira, 23 de setembro de 2025

os olhos cheio de cores

Foto: Archivio Cameraphoto Epoche


"Em Cardinales bonitas, eu vou!"

Assim cantava e ia Caetano Veloso como um alento, numa canção que consola, no final da estrofe depois que via nas bancas de revistas o jornal O Sol se repartindo em crimes, espaçonaves, guerrilhas...
Na clássica e sintomática Alegria, alegria, o compositor baiano faz um mosaico de citações daquele agitado 1968, a convulsiva década lá de fora e daqui neste Brasil em caras de presidentes militares...
Assim, entre bombas e Brigitte Bardot, e outras musas da tela do cinema, como Claudia Cardinale, tornavam os olhos cheios de cores e amores vãos... por que não, por que não?
Ela de tão bela era muitas Cardinales. Na canção e no meu coração.
Naquele mesmo ano apaixonei-me por Claudia logo quando ela surge bela e inesperada iluminando a sequência da estação no sensorial de Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone.
A atriz tunisiana do cinema italiano partiu hoje aos 87 anos.
Eu menino, puro e besta vindo do interior, mais do que fã, queria casar com ela quando crescer... Grandes beijos de amor.
A ausência agora no meu pretérito imperfeito.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

metomínia de um país



No sertão paraibano em plena ditadura civil-militar dos anos 60, o garoto Teobaldo enfrenta o embate entre o desejo e repressão no momento em que chega um enigmático pesquisador estadunidense ao DNOCS.
Esta é a sinopse do excelente, surpreendente e oportuno Corpo da paz, de Torquato Joel, representante da Paraíba na Mostra Competitiva de Longa-metragem do 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Rodado em preto e branco, o filme é narrado numa preciosa composição de planos fechados na maioria e os abertos num grafismo na tela onde nada falta nem sobra. Se o rigor formal da decupagem sufoca na intenção de demonstrar o medo, enquadra com precisão o sentimento e nos coloca organicamente na história, na intimidade do enternecimento e perplexidade dos personagens.
Como um Yasujiro Ozu no agreste paraibano, o diretor conduz em narrativa minimalista: os planos com tripé-baixo, a câmera-tatame à altura dos corações que pulsam curiosidade e estranhamento.
A partir de vivências marcantes e lembranças pessoais, Torquato ambienta esse recorte do período de ditadura em seu chão sertanejo com serenidade, sutileza e lucidez crítica. Através do olhar do garoto, extrai percepções para o entendimento e reflexão de todos. Cada cena é rica em detalhes, cada sequência é extensa em afluentes narrativos.
A vastidão do sertão paraibano é um pedaço daquele Brasil de duas décadas que vivemos de arbitrariedades, de torturas, de corpos sumidos, jogados ao mar, ou “afogados” em açudes, como particularmente é mencionado num diálogo do filme.
O sertão e o garoto Teobaldo como metonímias de um país.
No cinema brasileiro, cada cena é um retrato da nossa história.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

o Sundance de Redford






O ator escalado para interpretar Sundance Kid no filme de George Roy Hill (no Brasil Butch Cassidy, 1969) era Steve McQueen, à época já um dos maiores e mais bem pagos astros hollywoodianos. Paul Newman, já vestido no personagem de Cassidy, estava no mesmo nível de estrelato.
A ideia da Century Fox de escolher duas megaestrelas para interpretar os legendários ladrões Butch e Sundance estava dentro dos propósitos de estratégia do estúdio.
O título original, Butch Cassidy and Sundance Kid, passou a ser um problema: Steve McQueen não aceitou o nome do seu personagem vir por último. Houve até a curiosa proposta de fazerem metade das cópias do filme em que listaria Newman primeiro e a outra metade McQueen, que não aceitou e caiu fora.
Decidiram por Robert Redford, um ator até então não muito famoso, embora já com quase dez filmes no currículo, entre eles o ótimo Caçada humana, em que contracena com Marlon Brando e Jane Fonda.
Outro probleminha na fogueira das vaidades: como o título no meio desse impasse tinha mudado para Sundance Kid and Butch Cassidy, Paul Newman achou que passaria a fazer Sundance, mas o diretor o queria no papel de Cassidy mesmo. Então, que voltasse à proposta inicial do projeto, pois Newman exigia ser o primeiro nos créditos.
Robert Redford aceitou ser o segundo e brilhou tanto quanto Newman, que foi andar de bicicleta com Katherine Ross ao som de Raindrops keep fallin' on my head.
Defensor dos indígenas e das paisagens nativas, Robert Redford fez o caminho no cinema a sua maneira, mantendo distância possível dos ditames de Hollywood.
Fundou o Festival de Cinema de Sundance. O último do título se tornou o pioneiro como referência internacional de produções independentes.

o ator e o personagem


 "'Todos os homens do presidente não é apenas sobre a liberdade de informação, é sobre a consequência que esta liberdade tem num país em que a imprensa age sobre o poder, em vez de apenas importuná-lo. (...) E foi sorte também os dois (jornalistas Robert Woodward e Carl Bernstein) parecerem com Robert Redford e Dustin Hoffman. Até Nixon, mais tarde, mais calmo, torceria por eles se visse o filme".

- Luis Fernando Veríssimo em sua crônica O poder e o charme, publicada no livro Banquete com os deuses (Editora Objetiva, 2003).

Redford


 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Xingu à margem

Longa documentário de Wallace Nogueira e Arlete Juruna (PA/BA)
58° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
"O rio Xingu não obedece leis, ele vem restaurando e ressuscitando espíritos contra todo o mal a quem o fez", assegura Dona Raimunda.
Sua luta revela a dura realidade de segregação enfrentada pelos ribeirinhos, beiradeiros e indígenas na Volta Grande do Xingu, em Altamira (PA), desde a construção devastadora da Hidelétrica de Belo Monte.
Sua presença na tela e no palco do cine Brasília, ontem à noite, comoveu a plateia. Na figura magra, a história e força de uma mulher combatente.

domingo, 14 de setembro de 2025

hermetismos pascoais


 

o bruxo e a paisagem

Ilustração: Daniel Kondo

Numa das primeiras vezes que Hermeto Pascoal fez show em Brasília, ficou encantado com a cidade. Não exatamente com a arquitetura diferente, mas com o verde por todos os lados.

Quando o carro, vindo do aeroporto em direção ao hotel, entrou no Eixão Sul, uma das largas avenidas de seis faixas que formam o desenho da asa do avião, o músico esverdeou seu olhar albino.
Durante o percurso, entre silêncios e murmúrios melódicos improvisados, elogiava a paisagem na rodagem horizontal da janela.
Em um momento, disse, mais para si do que para quem estava ao seu lado: “Só faltam uns cabritinhos pastando nessa grama”.
Esse episódio sempre me comoveu. No livro de poemas que estou finalizando, A distância e a paisagem – Escritos sobre Brasília, menciono em um trecho:

“e os bodes pastando no verde do Eixão
que o bruxo Hermeto chegando imaginou”.

Ele partiu ontem aos 89 anos.
Ficam na história da música brasileira, em nossa memória afetiva e no molde da saudade, seus hermetismos pascoais que nos salvam e sempre nos salvarão dessas trevas, como bem definiu Caetano.