sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

arqueologia do sonho


No começo deste ano, David Felício, técnico em preservação e digitalização do Museu da Imagem e do Som, Ceará, ao abrir a lata com a cópia 35mm do meu primeiro filme, Um cotidiano perdido no tempo (1988), para o processo de restauração, deu um sorriso, disse-me, ao ler uma frase que escrevi à época da realização na parte interna:

"Faço cinema para dar força a quem sonha".
Uma mensagem como numa garrafa jogada ao mar em direção ao futuro, à civilização de jovens como David, Gabriela Dantas, Mariano e Gabriel Dantas para que tenham forças para continuar a sonhar.
Parabéns Fábio Rodrigues Filho, coordenador do Cinema Dragão do Mar, pelo afeto da projeção do sonho.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

a esfinge


Foto: Acervo Paulo Gurgel Valente

"O que sinto não é traduzível. Eu me expresso melhor pelo silêncio."

- Clarice Lispector em seu último livro, Um sopro de vida, publicado postumamente em 1978 pela Editora Nova Fronteira.
A escritora faleceu um dia antes de seu aniversário, 10 de dezembro, quando faria 57 anos. Pelo ritual judaico não pôde ser enterrada no dia seguinte, um sábado. Seguiu para o Cemitério Comunal Israelita, bairro do Caju, Rio de Janeiro, dia 11.
48 anos que partiu para outros silêncios.   

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

traços do arquiteto

Foto: Acervo Fundação Oscar Niemeyer

Na manhã de 6 de dezembro de 2012, a antropóloga carioca Yvonne Maggie seguia em um táxi para o Instituto de Arquitetos do Brasil, no Rio de Janeiro. No rádio, o noticiário repercutia a morte de Oscar Niemeyer no dia anterior.

Entre muitos depoimentos de personalidades sobre a importância do arquiteto, Yvonne se emocionou com o relato de um repórter. Ele estava na fila de uma padaria e ouviu a conversa de uma menina, de sete ou oito anos, com a mãe. A garota disse que se sentia muito triste porque Oscar Niemeyer morreu. E arrematou: “Ele foi um grande escritor que escrevia casas e edifícios”. A mãe, curiosa, perguntou onde ela aprendeu aquilo. “Na escola”, afirmou.
Assim como Yvonne, imaginei que essa menina poderia ser aluna de um Centro Integrado de Educação Pública (Ciep), criação de Darcy Ribeiro quando foi secretário de Educação no governo Brizola, e desenhado por Niemeyer. E lembrei do livro de memórias do arquiteto, As curvas do tempo, lançado em 1998.
Niemeyer começou os textos no final dos anos 70. Mas tinha dúvidas da qualidade literária. Foi seu grande amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade, historiador, que o incentivou: “Vai escrevendo, Oscar, vai escrevendo. Corrige depois”.
Publicado pela Editora Revan, o livro cativa pela simplicidade narrativa, como estivéssemos numa sala ouvindo o autor contar onde nasceu; sua infância no bairro Laranjeiras; as idiossincrasias dos parentes; a quantidade de escritores que leu; as farras com os amigos; o medo de viajar de avião; o despertar pela arquitetura e a relação afetiva com Le Corbusier; sua militância no partido comunista e amizade com Prestes; seu primeiro projeto individual, o Conjunto Arquitetônico da Pampulha; os bastidores da construção de Brasília e as longas conversas com Juscelino; a resistência de não se entregar à velhice e o incômodo com a implacável certeza da morte.
O escritor italiano Alberto Moraria dizia que a literatura se engrandece quando se aproxima da linguagem oral, máxima que se aplica ao despojamento da autobiografia de Niemeyer. Sem ter necessariamente uma sequência cronológica nos capítulos, a imagem que faço são folhas de croquis literários espalhadas sobre uma enorme prancheta e o autor pegando uma para ler, depois outra para reler, abaixando-se para pegar uma que caiu com o vento que entrou pelo janelão de seu escritório em Copacabana, onde trabalhou até cinco dias antes de falecer, aos 104 anos.
Para a edição do livro, o autor criou desenhos, colocados no final das páginas, como rodapés na sala ilustrando trechos de uma casa.
Niemeyer, o arquiteto que teve seus traços lidos pela menina da fila da padaria.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

aquele filme do Godard


Foto: Raoul Coutard

“A realidade é muito complexa para ser transmitida pela tradição oral”. Esta é a frase que abre o filme “Alphaville, de Jean-Luc Godard.
Numa cidade futurista, um computador aboliu os sentimentos de todos os habitantes. Um agente chega ao local para convencer o inventor a destruir a máquina.
Com esse enredo, Godard (1930-2022) realizou em 1965 um filme que poderia ser feito nestes esperançosos e ao mesmo tempo distópicos e algorítmicos anos 2000. Há dias em que temos menos manhãs, em que somos engolidos pelo que inventamos.
Alphaville é uma premonição a 24 quadros por segundo. Como a realidade é muito complexa, o cinema inventa a memória do futuro.
Abaixo, a atriz Anna Karina e o diretor num intervalo das filmagens. Um olhar vê o cinema em movimento.
Hoje, 95 anos de nascimento do visionário Godard. 

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

de frente ao Índico

Foto: Alcance Editores, Moçambique

Felizes os homens
Que cantam o amor.
A eles a vontade do inexplicável
E a forma dúbia dos oceanos.
- Eduardo White, poeta moçambicano, um dos maiores de sua geração.
Publicado em seu primeiro livro, Amar sobre o Índico, 1984 (Editora AEMO, Maputo), o poema não tem título, está na página 64, ali no meio, navegando na imensidão de beleza poética. White, filho de português e inglesa, tinha 21 anos quando escreveu essa preciosidade.
O amor redentor, o erotismo lírico, os questionamentos existenciais, marcam a poesia desse observador dos mares, assim como os reflexos da colonização portuguesa, os conflitos políticos, a intensa guerra civil que massacrou seu país nos anos 70.
Com quase 20 livros publicados, nunca encontrei um exemplar no Brasil, desde quando existiam as livrarias, desde quando vasculho em sebos. É preciso importar, viajar, pedir a quem vem de lá depois dos oceanos. Ou navegar de outras formas, nos sites. Nos sítios. Fazer como ele disse: “Em mim não ambiciono nada em definitivo se não a magia de viajar”, do livro Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de ser Ave (1999).
Eduardo White morreu precocemente, em 2014, vitimado por meningite. Hoje ele faria 62 anos de frente ao Índico, cantando a vontade inexplicável do amor.